quarta-feira, 17 de junho de 2009

Analepse

Falham-me, falham-me os sentidos. Fixo os dedos na terra, mantenho-me sentada no chão, as pernas cruzadas como se pudesse levitar. O lábio inferior sente-se sufocado pela pressão que é exercida pelos dentes, o nada é fixo pelos olhos, as glândulas lacrimais tentam controlar a grande produção de lágrimas que tendem a libertar-se. Pára. Volta a envolver-me o corpo, retém o tempo e apaga todas as luzes do mundo. Recua. Quero tornar a ver-te de longe, aproxima-te lentamente, reduz a velocidade conforme existe também uma diminuição da distância. Progride. Solta-me do abraço, segura o meu rosto com as mãos, chora de emoção sobre a minha face. Novamente, retrocede. Estaca à minha frente, executa outra vez a expressão facial de quem esperou tanto por aquilo, ajuda-me a levantar do chão. Chega de levitar, adianta para o momento do cerco. Estou segura nos teus braços, a tua voz repete inúmeras vezes palavras desconexas na escuridão do mundo que trouxeste, o meu lábio finalmente sente-se livre para respirar. Vai para o final. Une as nossas mãos num nó, finge que podemos estar assim todos os dias, volta a enganar o tempo. Altera a ordem dos acontecimentos, sobressai ou anda para trás, vai para o meio. Mas desta vez, fica, não partas. Falta, fazes-me falta. Restauração de forças, não consigo convalescer sem ti. Onde estás? Onde estão? Os meus sentidos.

Encher de letras

A vida, tantas vezes comparada a uma viagem de comboio, decorre como se fosse tudo o resto que se movesse, e apenas nós, supostamente, somos os únicos que nos mantemos imóveis. Assim como o pensamento. Flui livremente por todos os caminhos do nosso ser, transfigura cada fibra que possuímos, intensifica o estado vegetal em que muitas vezes nos podemos encontrar sem nos apercebermos: imutáveis, sem conseguir exercer um único movimento, deixando que as reflexões nos comandem.
É assim o primeiro estado do pensamento, em que a inconsciência nos faz reflectir sem pudor, tornando-se por vezes a nossa mente um filme pornográfico, onde cada um dos factos mais obscenos vagueia podendo não notar a sua repugnante desonestidade e deste modo pode adquirir uma forma algo que fantasiosa ou, então, assume uma forma de martírio que pretende fazer com que haja um cambio na mentalidade, demonstrando assim os muitos enganos da conduta humana. O pensamento é assim algo variante conforme a direcção poética de cada um. Todos somos poetas quando reflectimos em todos os factos que compõem esse tudo tão diminuto e esse nada tão imenso que é a vida.
Até que ascende o momento em que o pensamento começa a encarregar-se de se transformar em palavras, as ideias deixam de dimanar tão incompreensivelmente e passam a exercer uma forma que pretende demonstrar algo claro e concreto, tendo para isso a inspiração um forte papel. Esta surge quando menos esperamos, arruína todas as fechaduras e deixa abrir as portas que escondem a vontade que todos nós temos de nos exprimir como bem quisermos.
Desta forma, passamos a ter uma superfície coberta de papéis amarrotados ou feitos em pedaços, um caderno com textos cuja leitura é impossível de ser feita uma vez que estes se encontram suprimidos com riscos de uma caneta ou tecla “delete” disposta a eliminar algumas palavras, diversas frases ou vários parágrafos. Reflectimos numa das mais belas forma de arte: a escrita.